segunda-feira, 17 de junho de 2013


O DESCANSO DE GODOFREDO


Por Hugo Carlos

Sobre a velha e surrada esteira de palha onde costumava deitar-se após o almoço Godofredo, exausto, descansava. Com aparência desgastada, fruto do trabalho duro que exercera ao longo de mais de seis ininterruptas décadas, seu corpo já não tinha a posição ereta de outras eras pelo que se apresentava deveras flexionado. Problemas na coluna cervical, adquiridos no constante exercício da atividade rural deixaram-no assim. O lugar, um piso de chão duro, compactado irregularmente com ajuda de um malho, não sugeria maior conforto nem muito menos comodidade. Todavia, ante a escassez de vento (nesse horário só se viam redemoinhos) que se abatia no verão, impossível vislumbrar em casa outro igual. 
Era duro viver em clima tão austero. Mesmo porque o corpo tendia a perder água e tornava-se vulnerável à desidratação. Apesar de tudo - até mesmo do ceticismo que aflorava em determinados momentos - Godofredo era feliz e raramente se queixava do clima que diariamente o infernizava. 
- Pior seria, dizia consigo, se não tivéssemos o rio e suas águas correndo ano após ano em seu leito, aí realmente seria um caos...
Um caos como o que haveria de estabelecer-se no beco entre o rebanho, no qual bois, vacas, éguas e cavalos, disputariam em pé de guerra os primeiros lugares no bebedouro. Isso era o que ele podia conjeturar imaginando o movimento do gado, ao ouvir o prélio e os chocalhos que tocavam freneticamente. 
Só, que enquanto se prendia a esses detalhes, esquecia-se de olhar o tempo que já lhe parecia ligeiramente avançado. Engano! Pela porta da cozinha onde estava, pôde observar sem sobressaltos que o sol elevara intensamente a temperatura fazendo assim tremer o ar que parecia flutuar sobre chamas. Era sinal de que a tarde estava apenas começando, até porque o “Nordeste” nem começara a soprar. 
Decidiu prolongar o descanso, que alguma ou outra ousada mosca insistia em interromper. Nem sempre resoluto, parecia convicto de que seu corpo ressentia-se de repouso e não valia a pena, por tão pouco, alquebrá-lo ainda mais. Entretanto, ao mesmo tempo em que desejava por em prática essa nova decisão, não sabia como satisfazer tal necessidade porquanto nunca se acostumara à ideia de ficar deitado por muito tempo. Sabia que sentiria sono, mas como conseguir uma madorna em meio a tantos problemas carentes de resolução? Certamente, se tentasse dormir, era pouco provável que conseguisse. Era esterco para bater, vazante para preparar, cabritos para assinar, então como fugir dessas responsabilidades se não dispunha de ninguém para substituir-lhe? O ideal seria mesmo resolvê-los de alguma forma. Ponderou sobre a mais viável, já pensando em levantar-se. Mas hesitou. Como tivesse sono adormeceu. 
A esteira era pequena de modo que somente comportava o tronco e parte das pernas de Godofredo. Nada mal, no entanto, para quem tinha o hábito de deitar-se de bruços com os joelhos flexionados, os pés alçados até certa altura, de maneira a direcionar suas plantas para cima, enquanto que sobre o chão seus braços estendiam-se na horizontal, postura que não só sugeria a pretensão de abreviar o descanso, mas, sobretudo, de ocultar o pescoço e manter erguida a cabeça que ficava o tempo todo meio que encaixada entre os ombros. 
Para quem não o conhecia, era provável que o vendo absorto ou dormindo naquela posição, pudesse inclusive imaginar que Godofredo era um dorminhoco contumaz, desses que sonham caminhando e só conseguem acordar depois de terem passado por enorme constrangimento. Afinal de contas, para quem carregava nas veias o sangue do sonambulismo, a madorna assim empreendida poderia desencadear a ideia de que ele se assemelhava àquele outro homem, do qual se fala que andava dormindo, e em algumas ocasiões, quando precisou viajar, somente depois de muito andar é que conseguiu descobrir que se esquecera de vestir as calças. Brincadeiras à parte, a verdade é que em nada se pareciam um com o outro, nem mesmo no plano existencial, visto que, enquanto o primeiro conseguiu ultrapassar a casa dos oitenta, o segundo não chegou sequer à dos setenta. 
A cozinha ia se enchendo de gente de modo a expulsar o silêncio que reinava no seu interior. Uma vez de pé, Godofredo já não sabia ao certo por qual daqueles afazeres deveria começar, quando então pediu à mulher o obséquio de ferver um café. 
O sol continuava quente e uma calmaria de sepulcro tornava abrasador aquele lugar. Paciente, esperou sem sucesso pelo vento que havia horas não dava o ar da graça, pois nem mesmo os costumeiros assobios o fizeram surgir naquele momento. Foi então que tomado pela fadiga, acentuada em razão da ingestão de largos e sonoros goles de café, que Godofredo de novo adormeceu, desta vez para nunca mais acordar.

Mossoró, novembro de 2002.

domingo, 16 de junho de 2013

Texto escrito pelo meu amigo Hugo Carlos de Gov. de Dix-Sept Rosado

IRRESPONSABILIDADE

Por Hugo Carlos

      Passava da meia noite. Um calor de proporções quase insuportáveis grassava firme pelo povoado. No céu, onde um azul amplo e característico de noites de verão fazia-se notar com certo destaque, estrelas movimentavam-se apressadas, num fervilhar frenético que encantava. Estávamos na estação invernosa, porém, era a seca que predominava na chapada. Na escuridão, riscada por um relâmpago próximo que exibia e possibilitava uma visão pouco detalhada do espaço, nenhuma pequena nuvem sinalizava a existência de chuva. 
O cenário não era dos mais belos. Na casa de taipa, nem mesmo a chegada de Abdias foi capaz de levantar o astral. Do alpendre, onde podia-se avistar as redes das crianças que num pequeno cômodo dormiam famintas, a luz bruxuleante de uma lamparina denunciava a razão de tanto desânimo. Para piorar, Abdias que pouco se preocupava com a situação de dificuldade enfrentada por mulher e filhos, estava alcoolizado e protagonizava um espetáculo pouco comum aos chefes de família. Dedicados que se diga.
      Em meio a tudo aquilo, Margarida antes forte quedava-se impotente. Aborrecida, vasculhava na memória uma saída para aquele que se constituía no seu maior problema, entretanto, o que via não ia além da irresponsabilidade do marido que no seu entender não se emendava. Era um mal, como sempre afirmava, irremediável! Afinal de contas, Abdias que saíra pela manhã, prometendo um retorno rápido, imediato, havia bebido o dia todo e somente àquele horário é que estava de volta. Fora comprar os suprimentos necessários, inclusive para o almoço, cuja escassez era frequente em sua paupérrima residência.
      Continuou pensando... Seu pensamento, contudo, foi esmagado pelo relinchar de um equino que pastava nas imediações. Quis saber da hora. Como não dispusesse de relógio abriu a janela, pigarreou alto, olhou o céu já não tão estrelado quanto antes, aí pôde então constatar que era muito tarde. Se bem que aos seus olhos o tempo perecia parado! Deteve-se por um instante. Ao despertar, viu que Abdias havia adormecido. 
Nesse momento, uma rápida sensação de tranquilidade passou a encher de paz o ambiente. Dentro de casa, o tumulto que havia pouco presenciara, dava agora lugar ao silêncio que se restabelecia de vez. Menos tensa, dando por vezes a entender que não dava a menor importância ao que se repetira àquela noite, Margarida mesmo cansada continuava sua luta... Primeiro salgou a carne ressecada - sobra da que serviria como almoço - lavou umas vasilhas, forrou a rede mijada de um dos filhos, a fim de amenizar-lhe o desconforto, e já se preparava para dar os últimos retoques, no que seria o almoço do dia, quando pôde então sentir, pelo cheiro que exalava da panela, que o odor de um bode velho, o famoso “pai do chiqueiro” havia infestado toda a casa. 
Nisso, um ódio que parecia inigualável, apoderou-se de seu peito ferido. Transtornada, pensou em fugir para bem longe não sem antes dar cabo de Abdias que na sala dormia um tanto inquieto, pensamento de logo dissolvido ante a presença incomum de um dos filhos, que, nem bem clareara o dia, já postulava ali sua comida. 
Era o mais novo. Bastou reanimar a lamparina, utilizando uma faca com a qual puxou a parte intacta do pavio e lá estava ele acocorado à espera do alimento. 
      Margarida não teve dúvida em alimentá-lo. Vendo-o comendo, compadecia-se do estado de desnutrição em que se encontrava, na mesma proporção em que desejava eliminar o marido. 
Imergira nesse pensamento, quando um suave raio de sol entrou pela casa adentro como que anunciando o amanhecer. Olhou em volta e pôde vislumbrar surpreendida a chegada de um novo dia. Viu campos sem flores, sem borboletas e passarinhos, os outros filhos ainda famintos, só não viu Abdias, que em mais um ato de pura irresponsabilidade, saiu sem ser notado e sem dizer para onde ia.

Maio de 2001.

sábado, 15 de junho de 2013

Jornalzinho feito pelas minhas alunas do 8º ano A do Jarbas Passarinho. 1º Exemplar a nível de experiências.