domingo, 16 de junho de 2013

Texto escrito pelo meu amigo Hugo Carlos de Gov. de Dix-Sept Rosado

IRRESPONSABILIDADE

Por Hugo Carlos

      Passava da meia noite. Um calor de proporções quase insuportáveis grassava firme pelo povoado. No céu, onde um azul amplo e característico de noites de verão fazia-se notar com certo destaque, estrelas movimentavam-se apressadas, num fervilhar frenético que encantava. Estávamos na estação invernosa, porém, era a seca que predominava na chapada. Na escuridão, riscada por um relâmpago próximo que exibia e possibilitava uma visão pouco detalhada do espaço, nenhuma pequena nuvem sinalizava a existência de chuva. 
O cenário não era dos mais belos. Na casa de taipa, nem mesmo a chegada de Abdias foi capaz de levantar o astral. Do alpendre, onde podia-se avistar as redes das crianças que num pequeno cômodo dormiam famintas, a luz bruxuleante de uma lamparina denunciava a razão de tanto desânimo. Para piorar, Abdias que pouco se preocupava com a situação de dificuldade enfrentada por mulher e filhos, estava alcoolizado e protagonizava um espetáculo pouco comum aos chefes de família. Dedicados que se diga.
      Em meio a tudo aquilo, Margarida antes forte quedava-se impotente. Aborrecida, vasculhava na memória uma saída para aquele que se constituía no seu maior problema, entretanto, o que via não ia além da irresponsabilidade do marido que no seu entender não se emendava. Era um mal, como sempre afirmava, irremediável! Afinal de contas, Abdias que saíra pela manhã, prometendo um retorno rápido, imediato, havia bebido o dia todo e somente àquele horário é que estava de volta. Fora comprar os suprimentos necessários, inclusive para o almoço, cuja escassez era frequente em sua paupérrima residência.
      Continuou pensando... Seu pensamento, contudo, foi esmagado pelo relinchar de um equino que pastava nas imediações. Quis saber da hora. Como não dispusesse de relógio abriu a janela, pigarreou alto, olhou o céu já não tão estrelado quanto antes, aí pôde então constatar que era muito tarde. Se bem que aos seus olhos o tempo perecia parado! Deteve-se por um instante. Ao despertar, viu que Abdias havia adormecido. 
Nesse momento, uma rápida sensação de tranquilidade passou a encher de paz o ambiente. Dentro de casa, o tumulto que havia pouco presenciara, dava agora lugar ao silêncio que se restabelecia de vez. Menos tensa, dando por vezes a entender que não dava a menor importância ao que se repetira àquela noite, Margarida mesmo cansada continuava sua luta... Primeiro salgou a carne ressecada - sobra da que serviria como almoço - lavou umas vasilhas, forrou a rede mijada de um dos filhos, a fim de amenizar-lhe o desconforto, e já se preparava para dar os últimos retoques, no que seria o almoço do dia, quando pôde então sentir, pelo cheiro que exalava da panela, que o odor de um bode velho, o famoso “pai do chiqueiro” havia infestado toda a casa. 
Nisso, um ódio que parecia inigualável, apoderou-se de seu peito ferido. Transtornada, pensou em fugir para bem longe não sem antes dar cabo de Abdias que na sala dormia um tanto inquieto, pensamento de logo dissolvido ante a presença incomum de um dos filhos, que, nem bem clareara o dia, já postulava ali sua comida. 
Era o mais novo. Bastou reanimar a lamparina, utilizando uma faca com a qual puxou a parte intacta do pavio e lá estava ele acocorado à espera do alimento. 
      Margarida não teve dúvida em alimentá-lo. Vendo-o comendo, compadecia-se do estado de desnutrição em que se encontrava, na mesma proporção em que desejava eliminar o marido. 
Imergira nesse pensamento, quando um suave raio de sol entrou pela casa adentro como que anunciando o amanhecer. Olhou em volta e pôde vislumbrar surpreendida a chegada de um novo dia. Viu campos sem flores, sem borboletas e passarinhos, os outros filhos ainda famintos, só não viu Abdias, que em mais um ato de pura irresponsabilidade, saiu sem ser notado e sem dizer para onde ia.

Maio de 2001.

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